19 de julho de 2009

Pombo, mendigo e francesinho (momento literário)

Gotículas d’água misturadas à areia escorriam por entre as pedras desencontradas que formavam o chão da Praça Municipal. Lama. Nas escadas do antigo Palácio do Governo, um homem de cara embrutecida, encardida, sustentando um bigode preto e espetado, observava com um olhar morto o movimento colorido dos turistas que por ali passavam. Meninos pediam esmolas de dez ou vinte centavos para comer. Uma mulher na calçada, já na esquina da rua Chile, puxava um peito murcho para dar de mamar ao filho grudento e barrigudo. Acho que estava doente. Um velho baixinho, com poucos dentes, mas risonho, vendia picolé. Próximo ao Elevador Lacerda uns hippies vendiam brincos, colares e pulseiras. Fui até próximo à lanchonete. Lá, vi uma italiana gorda, cheia de colares, de bochechas coloridas revirando a bolsa à procura de algo que não consegui descobrir o que era.. Ao lado, duas crianças: uma menina e um menino, ambos francesinhos, branquinhos, loirinhos, de olhos azuis e bochechas rosadas sorviam seus deliciosos sorvetes de cajá e morango, suponho. Do outro lado, sentado, um casal de namorados. Num ato descuidado, a moça deixou sua blusa manchar pelo sorvete. O namorado levantou-se rapidamente a fim de tomar as providências necessárias para reparar o dano, pois a moça ficara muito constrangida com aquela situação. Um menino pretinho, pés no chão, cabelo enroladinho, dentes cheios de cárie, olhos esbugalhados, acompanhava a cena, empinando a barriga para frente que ajudava a sustentar a tabuleta dos queimados que vendia. Ali por perto, uma jovem paulista bem vestida, branca, cabelos lisos, bolsa de couro, perfeitamente maquiada, contava com suas unhas muito bem pintadas seus fios de cabelo enquanto esperava o namorado voltar da lanchonete. Havia turistas de todas as nacionalidades. Italianos, franceses, americanos, japoneses, argentinos, com também do Brasil. A maioria carregando suas máquinas fotográficas para lá e pra cá. Algumas senhoras, algumas, repito, olhavam pra aquelas crianças pobres com olhares meio espantados. Aquelas criaturinhas eram muito diferentes de seus netos... Escorei-me na mureta que dá de frente para a Baía de Todos os Santos. Lá em baixo, os casarões velhos da Ladeira da Montanha, o Mercado Modelo, os ônibus e as pessoas minúsculas. De lá de cima tudo é minúsculo e podemos dominar aquelas águas azuis e tranqüilas sempre lindas e alcançar com as pálpebras a ilha de Itaparica. Soprava um vento ameno de final de tarde. Olhei para a Câmara Municipal e lembrei de um movimento de estudantes há uns dois anos atrás, que protestavam contra o aumento das passagens de ônibus. Enquanto os policias caminhavam rumo à escadaria da Câmara, os estudantes cantavam: “Marcha soldado cabeça de papel, quem não marchar direito vai preso no quartel...” Mas não demorei muito com essas lembranças. Logo, voltei a atenção para o outro lado onde os pombos realizavam sua trajetória de sempre: Vinham até o chão da praça comer depois subiam ao cume do antigo Palácio do Governo. Desciam e subiam. Mais à frente, a praça Tomé de Souza. Lá o chafariz divertia as crianças. Os velhos e os guardas arrastavam seus pés e barrigas. Sentada de pernas cruzadas num banco e com um vestido cor-de-rosa desbotado, uma prostituta velha, magricela e aparentemente faminta, tragava um cigarro fedorento. Quase no centro da praça, o busto do bispo Sardinha. Toda vez que o vejo, me vem à cabeça inevitavelmente a cena cruel de sua morte: há uma versão da história que diz que o bispo fora vítima do canibalismo dos índios. Até hoje não se sabe a verdadeira estória. Mas o fato é que não há dia em que eu pise ali e não me venha à mente a imagem do bispo sendo devorado pelos índios...Na ladeira do pelourinho, sentados em frente à entrada da antiga e primeira faculdade de medicina do Brasil, outros hippies estendiam suas toalhas de colares e brincos no chão. Desci até a Fundação Casa de Jorge Amado. Estava fechada. Voltei até a Praça Municipal e pude contemplar as mesmas cenas de sempre: os turistas coloridos e deslumbrados com as paisagens coloniais, as crianças pedindo moedas para comer, os francesinhos de bochechas rosadas, o desfile das moçoilas do sul e sudeste, os casais de namorados, os pombos subindo e descendo, os desempregados, os peitos murchos das mulheres mendigas, pretos e velhos de olhares perdidos e minguantes e o vento, o vento ameno da Praça que, de alguma forma misteriosa, conseguia tudo harmonizar.

3 comentários:

taís disse...

São Paulo também é assim, igualzinho, e até hoje não me acostumei.

Fábio disse...

Os centros das grandes cidades, bem como certos bairros, estão cada vez mais parecidos. Assim como as periferias. Sobra pouca coisa para se distinguir...

josue mendonca disse...

terrível isso não?