3 de agosto de 2011

Catarina

Catarina, pequenina, afogava a mão no riacho que ficava nos fundos de casa. Ela gostava de colocar a mão na água para sentir a pressão da correnteza tremer-lhe os dedos. Era gostoso tentar conter a força da água como se quisesse dominar a natureza. Via seu rosto tremendo na água e achava graça. Seus cabelos que eram grandes, de cachos ruivos, desprendiam-se ao vento e formavam uma figura ainda mais engraçada na água. Catarina ria da vida, daquele barulho gostoso de água corrente, de seu rosto pintado na água, da força da água em sua mão. As tardes de Cataria eram sempre belas. Às vezes colocava apenas os pés e também sentia prazer. Abria aquele sorriso leve, como se a felicidade do mundo fosse uma criança a brincar com a água nos fundos de casa. E o era. Aquela era a felicidade de Catarina, 6 anos, uma felicidade do tamanho de uma riacho de águas sem fim.

o velho Pedro

O velho Pedro encostou-se na mureta que dava para o mar. Todo fim de tarde o homem ia para o mesmo lugar, tirava o saco de amendoins do bolso e ia mastigando lentamente um por um enquanto divagava o olhar cansado sobre as águas que escureciam. Podia-se dizer que era um ato religioso. Toda tarde, naquele horário, daquele jeito, com seus inseparáveis amendoins, ele estaria lá, a dedicar o resto de tempo de vida ao entardecer. Nada tirava a concentração de seu Pedro. Um cotovelo escorado no muro e uma mão que soltava o amendoim torrado na boca. O sol, como sempre, parecia sempre mergulhar na água. Era como se a água, aquela em que ele podia tocar, por fim, conseguisse derrotar todo o fogo e calor do sol. O mar, que tudo engole, não deixaria escapar nem aquele astro celestial de tanto esplendor. Na manhã seguinte, como por um milagre, ele tornaria a subir aos céus. Para isso, o velho Pedro não tinha explicação. Nem no tabuleiro de dominó se atrevia a arriscar um palpite. Também não se importava com isso. Para ele, o importante era mesmo ver o mar engolindo por inteiro aquela bolota de fogo. Esse momento supremo do mar, ele não perdia por nada. Pescador a vida inteira, nunca tinha ido à cidade grande. Aprendera sempre a respeitar o mar. Era quase uma idolatria. Algumas pessoas tentavam explicar aquele fenômeno para o velho Pedro. Mas ele não dava importância. Queria mesmo era acreditar que o mar engolia o sol, e o levava lá pra profundezas onde vivem os peixes grandes. Não conseguia entender muito bem a figura de um sol molhado, encharcado. Mas se o fiado na bodega se seu Antônio tinha lá seus mistérios, não era de se espantar que o mar, esse mundaréu de água todo, os tivesse também. E mistério de mar era pra ser respeitado e muito, no limite de suas proporções. Quando a vida lhe roubasse o último suspiro, o velho queria ser jogado ao mar. Imaginava que em algum momento e em algum lugar, poderia, por algum outro milagre, ter um encontro especial com o sol lá embaixo, onde homem nenhum jamais foi.

Umbu

O menino caminhava pela estrada que parecia sem fim, sem curva. Tarde árida de poeira e sol que ardia em sua pele fina. Um pássaro grande e negro cruzou-lhe a cabeça. Modo de dizer, porque na verdade cruzou o céu, lá no alto, como se fosse tocar nas portas do paraíso.
O menino cambaleante de cansaço e fome deixava os dedos tropeçarem nas pequenas pedras que se estendiam por todo o caminho. Desejou a noite em que estaria em casa, junto à mãe, e poderia se esticar no chão frio da sala para ver o filme de guerreiros que passaria mais tarde. Alguns goles de café, um pão com margarina. Olharia pela frexa da porta para conferir se sua irmã menor estaria dormindo. Iria até o quintal para ver o azulão na gaiola, o pé de goiaba e, sobre aquele muro baixo de tijolos descascados, esticaria os olhos por aquela escuridão sem fim. Lá no meio do nada, poderia haver alguma espécie de bicho, bicho malvado que mata galinha, vaca e até gente.
A pedra que lhe sangrou o dedo o trouxe de volta à estrada quente. Faltava muito ainda. Resolveu parar um pouco e se escorar num pé de umbu. Um umbuzeiro grande, com umbus doces e suculentos. Sua boca salivou e então sem vacilar, subiu, feito um macaquinho, nos mais altos galhos para pegar o umbu mais doce. Mordeu com vontade. A árvore contorcida se confundia com o corpo do menino. Um esconderijo perfeito contra qualquer papa angu. Enquanto o caldo do umbu escorria-lhe pela boca e pescoço, parecendo uma serpente prestes a atingir sua barriga, o menino fechava os olhos para usufruir melhor aquela sensação de prazer. Doce um umbu. Doce vida. Entre as folhas do umbuzeiro, protegia-se do sol. Estava no alto, agora dominante. Coroado Rei do sertão, presenteado com o umbu mais doce e desejado da região. Um vento forte soprou. Apertou com mais força o galho. Quando abriu os olhos viu nuvens brancas que agora cobriam todo o céu. Eram muitas. Fato estranho, pois era uma tarde sem nuvens. Dizem que quando uma criança vira anjo, espalham-se pelo céu centenas de nuvens em forma de bolotas de algodão. Galhos quebrados.