21 de maio de 2009

Aristóteles, a escolinha e a vaca


Quando eu era criança, perguntava à minha irmã mais velha como ela conseguia ler. Ela me respondia: você vai aprender na escola. Eu achava bonitas as palavras, como elas ficavam todas organizadas cuidadosamente numa folha de papel, comunicando algo que eu morria de curiosidade de descobrir o que era. Na escola, fui aprendendo pouco a pouco, como geralmente ocorre. E as primeiras palavras eram tipo vaca, casa, zezé, bola, tatu, rato, nabo, faca, dentre tantas outras dissílabas. Eu ficava contente quando conseguia juntar uma sílaba a outra, pronunciar corretamente e, principalmente, compreender o significado, ou seja, quando aquelas letras juntinhas geravam a imagem correspondente na minha cabeça. Acho que a sensação era a de um insight.

Eu queria aprender logo pra sair lendo um bocado de coisa. Quando saia à rua, adorava observar cada palavra, exposta em qualquer lugar, e pronunciar. Era mais uma ótima sensação. Acredito hoje que esta sensação era porque eu percebia que o que estava aprendendo dentro da escolinha, tinha importância e utilidade no mundo lá fora, em minha vida real e cotidiana. De fato, eu começava a ampliar minha compreensão do mundo. Cada palavra desvendada fazia com que mais uma porção, ainda que pequena, da realidade à minha volta ganhasse significado. O mundo, aos poucos, ficava mas claro, como também mais envolvente, e eu me sentia não só mais situado, como também mais integrado a todas aquelas pessoas que já dominavam a leitura, fossem elas crianças ou adultos.

Sem saber, eu estava desenvolvendo o pensamento abstrato. Segunda Aristóteles, é essa capacidade que o ser humano tem de abstrair através da linguagem que o difere do restante dos animais. Ufa! Que bom que eu nasci gente! Agora, eu não estava mais limitado à fala nem ao que estava acontecendo à minha frente para descobrir o mundo. Eu podia contar com tudo o que estava escrito em qualquer lugar para ir um pouco além. Eu me tornava um ser humano mais livre. O tempo foi passando e, cada vez mais, eu ficava curioso em descobrir novas palavras e entender textos maiores e diferentes. Lembro que quando lia aqueles livros infantis, eu realmente me transportava. Posso dizer com todas as letras que era, de fato, uma viagem. Eu ficava impressionado com a capacidade que a palavra tinha de construir cenários. Era como se as palavras tivessem vida, entrassem na minha cabeça e começassem a rodar um filme. Eu começava a me apaixonar pelas palavras e achava uma barbaridade quando via um livro com frases sublinhadas, principalmente quando o risco estava torto. Pra mim, a folha era também importante, porque era ali que as palavras moravam. Elas deveriam ser preservadas em sua integridade com o mesmo respeito que se tinha às palavras. Sublinhar uma palavra ou frase, pra mim, era com o ato vândalo de pichar uma parede.

Eu li alguns livrinhos na escola. Mas os verdadeiros livros de minha infância foram os de Monteiro Lobato. Um que li com paixão foi "história do mundo para as crianças". Acho que esse foi o livro que começou a despertar meu pensamento pueril para uma visão um pouquinho mais crítica em relação ao mundo, se é que se pode falar em visão crítica na idade que tinha. Mas foi nele que descobri, por exemplo, que a história da humanidade era banhada de sangue, muito sangue. Na época, eu levantava os olhos e me perguntava porque o homem, no decorrer de tanto tempo, continuava com essa loucura de mantar gente.

Na adolescência, conheci Machado de Assis. Até hoje me pergunto como eram os olhos de ressaca de Capitu. Conheci Cecilia Meirelles numa prova que fiz pra Escola de Especialistas da Aeronáutica, em Recife. Acho que eu tinha uns dezesseis anos. Fiquei tão envolvido com o conto que, praticamente, esqueci do restante da prova. Conheci alguns contos de Clarisse Lispector, alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade. Eu começava a me interessar por literatura.
.
Mas alguns outros livros me chamaram a atenção, ainda na adolescência. Um se chamava ''o suspiro dos oprimidos''. Eu achava esse título fantástico. Poucas vezes na minha vida encontrei uma metáfora tão perfeita. Falava, basicamente, da luta pela sobrevivência do homem socialmente oprimido pelos grupos dominantes. Eu não li o livro por inteiro. Desisti porque não entendia muitos conceitos.
Um outro livro que também folheei, e que também me despertou a curiosidade pelo olhar crítico, foi o "sociologia crítica". Era um livro de minha irmã, que fazia parte de seus estudos do ensino médio. Dentre outras coisas, o livro falava da investida da Nestlé no continente africano e como isso tinha contribuido para problemas de saúde e até para a morte de várias crianças naquele continente.
.
Um outro livro que me chamou atenção na época tinha como título "o segredo da felicidade". O livro começava dizendo que a felicidade era uma atitude mental. Não é comum isso acontecer, em se tratando de livros de auto-ajuda, mas até hoje acredito que seja verdade. Já um livro que li do começo ao fim se chamava "colunas do caráter". Era um outro livro de minha tia. Pra quem não sabe, caráter, assim como os dinossauros, já passou pelo planeta terra, pelo menos como discurso. Li também Darlie Carnegie, seu célebre livro "como fazer amigos e influenciar pessoas". Por vontade do destino, nunca fui bom para fazer amigos, muito menos para influenciar pessoas. Mas ele citou um pensamento de William James (um dos principais psicólogos americanos) que guardei comigo. Dizia que "o mais profundo princípio da natureza humana é a ânsia de ser apreciado". Nunca consegui me convencer do contrário.

Falando em princípiois, li também muito a Bíblia. Tive uma educação religiosa protestante (presbiteriana) durante toda minha adolescência. Através da Bíblia, construí uma visão moral do mundo. Quando entrei na faculdade pela primeira vez, aos 18 anos, minha professora de Sociologia disse que moral já havia falecido. Começa a fase de conflito existencial. Na faculdade, descobri que existiam mais livros do que sonhava minha tia. Eu me perguntava se até o final do curso eu seria capaz de ler 500.000 livros. Duas coisas me aliviavam: 1. Aristóteles já havia morrido e, portanto, deixara de ler um bocado de livro. 2. Dos 500.000 livros, cerca de 10% teriam conteúdo exclusivo, tratariam de temas relevantes e, dentro desses 10%, apenas 0,1% faria sentido na minha vida. Ufa!

Ainda adolescente, li Darcy Ribeiro. Foi através do livro "o povo brasileiro" que comecei a fomar uma visão mais abrangente da cultura de nosso país. Serviu-me, ao menos, para me libertar de alguns preconceitos e para compreender melhor questões como a desigualdasde social e as diferenças regionais. Li um pouco também de Gilberto Freire. Muito pouco, porque nunca tive paciência pra livros tão pesados. Foi através das críticas ao livro "casa grande e senzala", que passei a me sentir menos culpado por escrever sobre os fatos que observo. Se Gilberto Freire podia misturar evidência com imaginação, por que não eu? Já com Gabriel Garcia Marquez, tive a oportunidade de me sentir um inseto intelectual. Se alguém quer preservar sua auto-estima intelectual intacta, não leia um parágrafo desse escritor fantástico.

Bem, quando me mudei pra Salvador, comecei a ler um pouco mais. Eu não tinha dinheiro pra pisar numa faculdade, além de ter sido banido duas vezes da Universidade Estadual devido às cotas. Sentia-me frustrado e revoltado contra o sistema capitalista concentrador e excludente de que falara minha professora de geografia do ensino médio. Como eu não conseguia ser doutor, desejava, no mínimo, me tornar um filósofo de bar. Lia um pouco de quase tudo, a fim de formar uma visão global e integrada da realidade cósmica e transcendental. Com alguns livros e tantos pontos de vista, algumas coisas no mundo agora, ao contário do tempo da escolinha, começavam a perder sentido. Com o advento da internet e a explosão de informações fragmentadas e desencontradas, a situação piorou. O homo sapiens agora precisaria de aproximadamente 1.000 anos para formar uma visão coerente sobre alguma coisa. Eu havia chegado à Era do Quebra-Cabeças.
.
Mas não é exatamente isso que decepciona o ser humano. A questão é que, quando criança, a palavra vaca, por exemplo, significava apenas uma vaca: aquela que tem quatro patas, um rabo e dá leite. Já na fase adulta, após tomar muito Leite Ninho, descobrimos que qualquer palavra pode significar qualquer coisa dependendo da vontade ou criatividade do escritor. Há estudiosos que defendem que a linguagem cria realidade. Eu acredito. O curioso, porém, é que como se não bastasse esse poder inerente à palavra, muitos ainda gostam de usar técnicas de ilusionismo. Nesse contexto, uma vaca pode, então, significar, por exemplo, um carro de fórmula 1.

Apesar de tudo isso que nos pesa, continuo apreciando a palavra. Mas devo confessar que, no íntimo, sinto saudades da época em que quando lia a palavra vaca, eu sabia que se tratava exatamente de um bicho que fazia mooommmm...

4 comentários:

Fábio Mendes disse...

Dê-se por satisfeito. Se você estivesse hoje na escola, saberia ler a palavra "vaca", mas ela não teria nenhum significado. Talvez nem esse do bicho que faz "moooommm" (ou "mu").

Ler livro, então? É trabalhoso, muito grande... melhor ler twitter, que só tem 140 caracteres...

josue mendonca disse...

Fábio

eu tenho medo do twitter. não sei como usa, não sei pra que serve, não sei pra onde vai..(mas um dia eu aprendo...)
já me falaram desses 140 caracteres. será uma língua alienígena?
mas eu vou me adaptar, eu vou me adaptar..........

_Loirinha_ disse...

O desenvolvimento do pensamento abstrato ocorre antes mesmo da alfabetização do indivíduo, por volta dos três anos de idade quando a criança começa a relacionar as histórias que ouve com os aspectos do seu cotidiano. Porém acredito que a compreensão de mundo só acontece quando a pessoa deixa de ser um mero eco da opinião de terceiros, ou seja, quando é capaz de ter opinião própria sobre os fatos, construindo assim seus conceitos e princípios alicerçados na sua bagagem empírica de aprendizados. E isso tem faltado para muitas pessoas, o que se reflete em tamanha opressão social em todos os tempos.

josue mendonca disse...

Loirinha

eu acho incrível essa capacidade que temos de abstrair. as vezes minhas sobrinhas vêm me perguntar o que significa certa palavra ou frase. então eu explico e percebo no olhar delas a descoberta, como se eu estivesse visualizando na cabecinha delas a formação de mais uma imagem sobre a realidade..
e agora eu penso, o quanto de responsabilidade temos quando explicamos o mundo para as crianças....