27 de setembro de 2010

nuvens diferentes

E eram duas janelas. Nesta, o menino olhava para a rua e buscava no andar dos homens e mulheres o movimento da vida. As nuvens, com certeza, caminhavam num passo mais lento, o que, no início, lhe causava alguma confusão. Mas ele não quis se prender a isso. Antes, olhava para a outra janela, onde estava a menina. Mas não era qualquer menina. Era a menina que fechava a janela. E era diferente o ritmo dos passos, o das nuvens, o dos pássaros e o da janela da menina que se fechava. O dia estava ensolarado, os olhos do menino castanhos e arregalados, mas ainda assim, ele não compreendia por que os pássaros voavam tão rápido, porque os homens andavam apressados, porque as nuvens deslizavam ao vento e porque a janela se fechava com o movimento impiedoso de uma frágil mão de menina.
Quando o vento soprou, o menino já se esticava na cama e, agora, buscava um sonho com nuvens velozes.

26 de setembro de 2010

em suas mãos

E ela sorriu, como se colorido o mundo fosse. Milhões de estrelas que cobriam o céu e, uma por uma, caiam num ato único de chuva. E não haveria outro momento para tais palavras. O coração buscou fôlego e a menina com olhos brilhantes proferiu sem medo: eu te amo. Do outro lado, o menino tentava equilibrar as estrelas que caiam em sua mãos.

4 de setembro de 2010

mas

eu não concordo com você. acho sua idéia estúpida!
mas eu te amo - completou a menina de olhos castanhos-mel.

por uma boa causa

na verdade eu gostaria de participar de alguma revolução nacional por alguma causa social. mas acho que vou aproveitar esse tempo pra acessar a internet e ver uns videozinhos no youtube

deixa pra depois

querido candidato político, eu queria te matar hoje. mas estou com preguiça.

Lá vem Zé, tombando prum lado, tombando pro outro. Caindo pra aqui, caindo pra ali.
Lá vem Zé, perdeu o caminho, seu pé tem espinho, perdeu a cabeça, nem é João Batista.
Lá vem Zé, ainda é cedo, luz calma nas costas, respira cachaça.
Lá vem Zé, chutando a lata, o dedo cortado, bermuda encardida.
Lá vem Zé, cabelo assanhado, soluço e tropeço, conversa sozinho.
Lá vem Zé, artista da vida, coloca no bolso o mundo e os sonhos.

Zé pende prum lado, Zé pendo pro outro.

Lá vem Zé, subindo a ladeira, abraça o poste, a rua tá turva, lá vem Gabriela.
Lá vem Zé, sem camisa, sem calça, sem chinelo, sem alça, só soluço, topada.
Lá vem Zé, esqueceu da mulher, o dia tá triste, vamo tomá uma!
Lá vem Zé, não sobe a ladeira, namora com a mosca, levanta o dedo.
Lá vem Zé, faz um discurso, olha pro alto, soluça, se encurva, tropeça.
Lá vem Zé, parece uma cobra, pra lá e pra cá, e ri pras paredes, entende de tudo.
Lá vem Zé, a mão calejada, uma vida sofrida, hoje tem feijão, café acabou.
Lá vem Zé, arroto, tropeço, soluço.

O mundo girou.

Formigas vermelhas

as moscas e poça

Nuvens brancas no céu. Daquelas fofas e grandes que pensamos, quando crianças, ser de algodão e um céu azul, aquele azul claro que tentamos penetrar com os olhos em busca do infinito. Dentro do ônibus, misturavam-se cores contrastantes. O verde esmeralda dos olhos da moça lá na frente com sua blusa cor-de-rosa e cabelos loiros molhados e a sujeira preta dos pés do menino que vendia balas de gengibre a gritos. Ônibus são verdadeiros centros de complexidade sócio-visual. Existem, de fato, essas discrepâncias coexistindo que se vê em poucos lugares. Um bêbado desdentado-barbudo-bafudo-grudento com sovaco fedorento ao lado de uma lady com aromas de perfume francês. Natural, como o semáforo vermelho, os idosos sentados lá na frente, os pré-adolescentes ultrapassando gargantalmente os decibéis permitidos por lei, o cobrador com cara de ressaca, o motorista querendo atropelar o mundo e os estudantes inclinando seus livros na cabeça dos privilegiados sentados.

Os ônibus, além disso, trazem consigo uma contradição intrínseca. São chamados de coletivos, mas a verdade é que não há nada mais individualista. Uma disputa por cadeira e por espaço de pé sem igual. Janelas fechadas num calor desértico para não assanhar os cabelos das madames. Ou, então, a cara de múmia daqueles que nunca aprenderam o significado da palavra educação e, portanto, não sabem se oferecer a segurar livros ou bolsas. Mas, deixando as críticas de lado, volto às cores. E nesta manhã, as cores eram vibrantes. Do lado de dentro, o amarelo do vestido da menina de braço. Do lado de fora, moscas ao redor de uma poça. O dia estava suave. A luz do sol estava suave e se via partículas de poeira quase invisíveis a dançar no ar. Alguns homens do lado de fora se aglomeravam em círculo. Um pombo assistia a tudo no fio do poste. As lojas estavam abertas com vendedores ávidos por ganhar dinheiro. Os carros seguiam seus destinos. A mulher sentada ao meu lado, com óculos castigantes, dormia com um livro de romances sobre a perna. Haveria falta de romance na terra dos viventes? Eu pensava no meu futuro, pelo menos, no dia de amanhã. O que poderia haver contra o amanhã? Moscas. As moscas naquele dia seriam a negação do amanhã. Moscas girando em torno de uma poça. Meu olhos automaticamente se viraram para frente, pra onde havia futuro, porque se negavam a contemplar a dança das moscas. Não seria possível. Aquele dia, mesmo com todas suas contradições, mesmo com todas suas cores discrepantes, mesmo com mendigo fedorento ao lado de garota de capa de revista não deveria caber mais nada. Voltei meus olhos para o romance das pernas. A senhora dormia. Com que sonhava? Estava cansada. O pombo continuava no mesmo lugar. O menino dos gengibres parou de gritar. O semáforo continuava vermelho nos forçando a continuar parados no tempo. O motorista limpava o suor da testa. A menina lambia seu doce pirulito e as moscas continuavam rodopiando. A essa altura não me importava mais se ônibus era um transporte coletivo. Senti um embrulho no estômago.
Uma senhora religiosa baixou a cabeça num ato de oração. Cheguei a duvidar se haveria amanhã. Os odores, cores, cabelos, roupas, livros, bolsas, azul do céu e verde esmeralda, tudo agora se misturava num tornado em minha cabeça.
O semáforo abriu.
À frente, o futuro.
Atrás, uma senhora. Deitada num asfalto quente, com os braços estendidos, com a cabeça numa poça, moscas dançando e o pombo que a tudo assistia.

crônica minha escrita há um tempinho atrás

3 de setembro de 2010

por trás das montanhas

e quando o sol nasceu por detrás das montanhas, Clarisse esticou os olhos pro céu, enquanto o vento balançava seus cabelos loiros encaracolados. O mundo estava em silêncio. Até os pássaros haviam resolvido ficar em silêncio, um silêncio em respeito ao nascimento do sol. Clarisse poxou o ar com toda força de seus pequeninos pulmões, e depois soltou. Puxou e soltou sentindo a vida. Era gostoso respirar a manhã. Quando o sol nasceu por completo, Clarisse desceu a ladeira correndo. O mundo todo agora era seu.

2 de setembro de 2010

casca de banana

O homem trabalhava muito. E da forma que contamos estorinhas para crianças, dizemos que trabalhava e trabalhava. Tostões no bolso era o que lhe sobrava. Centavos para tomar uma pinga fim de semana. Vida dura, dizia sempre o homem com voz erguida. Trabalho duro, ônibus, televisão, pinga. De vez em quando, uma briga com o vizinho. Sempre, uma questão de futebol. Futuro não havia. Nem tem onde cair morto, diziam uns. Nem onde cair vivo, acrescentavam outros. Era como se a vida fosse uma ladeira. Um suor danado. Quando chegava em cima, escorregava numa casca de banana e descia tudo. José era assim. O homem da casca de banana. Mas diziam outros que não era azar. Era que José era burro mesmo. Já outros, diziam que foi falta de oportunidade na infância. Pobre Zé, nem pôde estudar, só trabalhar desde pequeno, na roça. E zé levava a vida do jeito que dava.
De vez em quando, Zé tropeçava sozinho. De quando em vez, aparecia uma danada de uma casca de banana.

o fim do mar

Enquanto o velho, sentado no banco da praia, lia sobre as disputas políticas para a presidência da República, o menino olhava pra o fim do mar. Ele inclinava a cabeça olhando para o céu, e depois ia descendo a vista até o encontro com o mar. E no fim do mar que não tinha fim, ele via o sol mergulhar. O sol iria para o fundo do mar. Mas não se apagaria. No outro dia, porque sempre haverá um outro dia, o sol voltaria ao céu, com tanto brilho e tanta força como jamais tivera.

encontro

e quando olhei nos olhos dela, nos olhos dela estando eu, não poderia haver quase mais nada além do encontro, encontrando-me eu em seu olhar. Encontro, ainda que nos desencontros do cotidiano, da rotina que sempre passa e volta sempre igual, mas agora diferente. Encontrando-me eu em seus olhos, num olhar não igual nem rotineiro, nem passageiro porque marcante, tão marcante que nunca igual. Em tanto brilho de tão pouco momento passageiro, tanta presença, quando o único e perfeito desfaz e desmancha o que é diariamente igual. Agora, não mais rotineiramente, sinto estar presente fora de mim, num ser totalmente diferente. E agora, não mais diferente, digo igual, porque encontro.

quero minha vó, quero minha vó - gritava a pequena Clarinha, 5 anos, esticando os braços ao se despedir de casa rumo ao encontro do pai em outro estado.